Salvem também a nau
Jornal Folha de São Paulo - 01/08/2017
Opinião / Tendências / Debates
VALDIR SIMÃO
Salvem também a nau
É natural que a primeira preocupação, quando um cruzeiro sofre uma avaria e corre risco de naufragar, seja com as vidas. Num segundo momento, no entanto, as atenções devem se voltar para a preservação da embarcação. Dela, afinal, dependem os empregos de milhares de pais e mães de família.
Os acordos de delação premiada firmados com o Ministério Público e amplamente divulgados pela mídia garantem a apuração de delitos, a devolução aos cofres da União de recursos públicos desviados e penas mais brandas aos delatores. Amenizam a punição criminal para os envolvidos, mas não protegem as grandes corporações.
No âmbito da Lava Jato, os sete acordos de colaboração conduzidos pelo Ministério Público com empresas investigadas permitirão a recuperação de mais de R$ 10 bilhões nos próximos anos. Até o momento, no entanto, não se tem notícia de que essas empresas tenham firmado acordo de leniência na esfera administrativa, como determina a Lei Anticorrupção.
Significa dizer que as pessoas jurídicas estão vulneráveis e podem ser inscritas a qualquer momento no cadastro de empresas inidôneas e, portanto, impossibilitadas de contratar com a administração pública. Mais ainda, estão sujeitas a outras penalidades administrativas previstas na legislação.
Pela Lei Anticorrupção, para uma empresa estar resguardada, ela deve colaborar também com a Controladoria-Geral da União (CGU) e a Advocacia-Geral da União (AGU) -a quem compete assinar os acordos de leniência em nome do poder Executivo federal.
Apesar do trâmite do acordo de leniência no Brasil ser mais complexo que o desejável, só ele garante a segurança jurídica necessária na esfera administrativa.
A dificuldade na assinatura dos acordos depois de três anos e meio de vigência da Lei Anticorrupção não significa necessariamente que ela tenha fracassado.
Nos EUA, tido como referência nesta seara, isso também demorou a pegar. O leniency program foi criado em 1978. O programa permitia que qualquer integrante de cartel celebrasse acordo com a autoridade antitruste, desde que fosse o primeiro componente a delatar o conluio, antes mesmo de iniciada qualquer investigação.
Durante 15 anos, a média de proponentes foi de apenas um por ano. No mesmo período, o órgão responsável pela gestão do programa não conseguiu ajuizar nenhuma ação em desfavor de cartéis internacionais.
As regras nos EUA eram consideradas pouco previsíveis. Em 1993, o Departamento de Justiça Americano promoveu uma reformulação para incorporar três principais modificações: imunidade completa automática, no caso de inexistir investigação prévia; possibilidade de imunidade completa, mesmo com a investigação em curso; imunidade criminal para todos os funcionários que colaboraram com a apuração dos fatos.
Em apenas dez anos, o número de propostas saltou para mais de uma por mês, atingindo o pico de três por mês em 2002 e 2003. As multas baseadas nessas cooperações superaram US$ 1,5 bilhão.
O Brasil ainda está engatinhando quando o assunto é acordo de leniência. Talvez seja necessário fazer alguns ajustes no arcabouço jurídico, mas as bases para o país avançar no tema já estão fincadas.
O fechamento de uma grande corporação não interessa a ninguém, sobretudo num momento em que mais de 13 milhões de brasileiros estão desempregados.
Tais conglomerados reúnem profissionais altamente qualificados, com um amplo capital intelectual acumulado, o que garante o sustento de milhares de famílias espalhadas pelo Brasil. Chegou a hora de também salvar a nau.
VALDIR SIMÃO, advogado, foi ministro da Controladoria-Geral da União no período em que a Lei Anticorrupção foi regulamentada (governo Dilma Rousseff)
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