Artigo do Dr Valdir Simão publicado no JOTA em 23/06/2017 : É necessário confiar nas instituições!
https://jota.info/artigos/acordo-de-leniencia-no-bc-e-cvm-foco-no-que-e-importante-23062017
ARTIGOS
Acordo de leniência no BC e CVM: foco no que é importante
É necessário
confiar nas instituições
Valdir Simão
23
de Junho de 2017 - 10h00
As críticas contundentes à Medida Provisória 784,
recentemente editada, remetem à interessante falácia do arenque vermelho.
Diz-se que, para evitar que os caçadores de raposa e seus cães atravessassem
suas plantações, agricultores da Inglaterra arrastavam arenques defumados,
peixes gordurosos e com forte odor, em todo o entorno de suas lavouras. Com
esse truque, os agricultores despistavam os cães de caça que não conseguiam
farejar as raposas.
O intuito da falácia lógica do arenque vermelho é oferecer
argumentos que atraiam e distraiam a atenção daqueles que se pretende
convencer, fazendo que estes percam o foco daquilo que é realmente importante.
Ao disciplinar o processo administrativo sancionador no âmbito
do Banco Central do Brasil e da Comissão de Valores Mobiliários – CVM, a Medida
Provisória 784 introduz a possibilidade de celebração de acordo de leniência
com o objetivo de obtenção de informações e documentos que comprovem infrações
na seara de atuação desses órgãos, bem como a identificação de responsáveis.
Cumprido o acordo celebrado, aos infratores é garantida a extinção da ação de
natureza administrativa ou a aplicação de fator de redução da pena pecuniária,
de um terço a dois terços. O instrumento não alcança a esfera penal. Como
regra, o acordo celebrado será publicado, salvo se prejudicar investigações ou
processos administrativos sancionadores em curso.
Alegações de que os acordos de leniência podem cercear
investigações criminais e proteger investigados não fazem sentido e despistam
aqueles menos atentos à importância dos acordos para a obtenção de provas e
para o estímulo à colaboração com as autoridades públicas responsáveis pela
investigação. A legitimidade do Banco Central e da CVM para a celebração dos
acordos de leniência decorre do fato de ambos serem órgãos sancionadores, com
competência para investigar e punir envolvidos em infrações no sistema
financeiro e no mercado de capitais. Eventual transação para redução de
penalidades deve ser feita por quem tem atribuição para aplicá-las. Transferir
essa competência para outros órgãos é inadequado, pois fragilizaria o poder de
fiscalização das autarquias.
Pode ser pertinente eventual crítica quanto à utilização de
Medida Provisória para a alteração legal (seria adequado um projeto de lei),
mas não quanto ao seu conteúdo. A norma não afasta a atuação de outros órgãos
responsáveis por investigar os ilícitos, notadamente o Ministério Público,
titular privativo da ação penal pública, a quem deve ser prontamente reportada
a prática de crime constatado pela administração. Também não afasta a aplicação
da Lei Anticorrupção nos casos de atos lesivos à administração pública nacional
ou estrangeira praticados por empresas submetidas ao controle do Banco Central
e da CVM. Eventuais falhas ou omissões no texto poderão ser corrigidas no curso
do processo legislativo.
A bem da verdade, a Medida
Provisória fortalece a capacidade de fiscalização das duas autarquias. O rito
processual foi aperfeiçoado e modernizado, garantindo celeridade nos
procedimentos, racionalização administrativa e respeito ao direito de defesa. O
processo decisório estabelecido é equilibrado, privilegiando o accountability, a
transparência e deliberações em instâncias colegiadas. As penalidades
pecuniárias, antes irrisórias, foram agravadas, podendo chegar a 2 bilhões de
reais, no caso do Banco Central, e 500 milhões de reais na CVM.
O Termo de Compromisso, instrumento alternativo de solução de
conflitos e controvérsias, agora estendido ao Banco Central, é utilizado com
eficácia pela CVM desde a Lei 9.457/1997. Pode ser firmado, por juízo de
conveniência e oportunidade da autarquia, observado o interesse público, desde
que o investigado cesse a prática ilícita, corrija as irregularidades apontadas
e repare eventuais prejuízos causados.
Os instrumentos são públicos e podem ser consultados pela
internet, no endereço eletrônico da CVM. São 454 Termos de Compromisso
celebrados, desde 1998. A previsão legal de não publicação no caso de risco ao
sistema financeiro não pode ser vista como regra. A publicidade é a regra. A
eventual não publicação de termo de compromisso ou acordo de leniência não
afasta ou impede o conhecimento e a atuação de outros órgãos com competência
para investigar os mesmos ilícitos.
Banco Central e CVM são órgãos com boa governança e rotinas e
procedimentos consistentes. Ambas instituições contam com auditorias de alto
nível que atuam de forma independente e profissional e estão sujeitas ao
controle interno, exercido pelo Ministério da Transparência e
Controladoria-Geral da União e ao controle externo, do Tribunal de Contas da
União. Suas atuações são fiscalizadas pelo Ministério Público Federal. Seus
gestores respondem pessoalmente por seus atos, decisões e omissões, nas esferas
administrativa, cível e penal. Suas estruturas são compostas por servidores com
excelente nível de formação, pertencentes a carreiras de Estado bem
estruturadas. Imaginar que instituições sólidas como essas possam ser
responsivas a interesses não republicanos é desconhecer seu funcionamento e
capacidade de reação a intervenções indevidas.
É certo que passamos por um momento delicado de depuração das
relações do poder público com o setor privado, o que gera um clima de enorme
desconfiança. Sabemos também que desvios de conduta podem acontecer em qualquer
organização pública, de qualquer poder, mesmo naquelas mais confiáveis e, a
princípio, imunes ao mal feito. Aperfeiçoar cotidianamente a governança, a
gestão de riscos e os controles dos órgãos públicos é sempre importante.
Todavia, é necessário confiar nas instituições públicas. Lançar suspeitas
infundadas sobre sua atuação gera desnecessária insegurança em eventuais
empresas colaboradoras, paralisa os processos decisórios governamentais,
prejudica o já combalido ambiente de negócios e potencializa a descrença da
sociedade na ação estatal.
_______________________________________________________
Valdir Simão - Advogado,
Ex Ministro da CGU e do Planejamento. Coautor do livro O Acordo de Leniência na
Lei Anticorrupção: Histórico, Desafios e Perspectivas (Trevisan Editora)
Os
artigos publicados pelo JOTA não refletem necessariamente a opinião do site. Os
textos buscam estimular o debate sobre temas importantes para o País, sempre
prestigiando a pluralidade de ideias.
Comentários
Postar um comentário