Estado deve incrementar segurança jurídica dos acordos de leniência
Ética responsável deve ser mais atrativa às empresas
Discussões foram acelerados pela operação Lava Jato
ARTICULAÇÃO INSTITUCIONAL E SEGURANÇA JURÍDICA NOS ACORDOS DE LENIÊNCIA
Há muitos anos que é quase impossível imaginar uma economia moderna funcionar sem a presença de grandes corporações, qualquer que seja o ramo de atividade. A lógica capitalista intensificou o modelo empresarial como sendo o meio dominante de se fazer negócio. O avanço do mercado financeiro levou à prevalência do modelo de sociedade anônima, conferido um caráter ainda mais impessoal às empresas.
Nesse modelo, os atos das “pessoas jurídicas” deixam de ser mera representação da vontade de seu dono ou sócios. Pela complexidade de sua organização, tamanho e capacidade de ação, grandes empresas passam a adotar um perfil de atuação que é resultado de um processo decisório intricado, sujeito a diversas instâncias hierárquicas. Ao seu final, as decisões de uma empresa refletem muito mais a cultura organizacional que se instalou ao longo dos anos naquela sociedade, do que propriamente a voz de um grande líder que sozinho poucas condições teria de influenciar cada pequeno ato que é adotado isoladamente pelos diversos empregados espalhados dentro de uma companhia de grande porte.
Ao mesmo tempo, na medida em que as empresas se tornam mais poderosas e impessoais, são também maiores os impactos que provocam sobre a sociedade como um todo. Há 12 anos atrás, Marvin T. Brown, em “Corporate Integrity: Rethinking Organizational Ethics and Leadership”, já alertava para o fato de que a conduta das corporações empresariais hoje, mais do que em qualquer outro momento da história, tem um impacto muito significativo nas comunidades humanas e no meio ambiente.
Para sustentar seu argumento, o autor relembra os escândalos envolvendo as empresas Enron, World-Com e Arthur Andersen, para lançar uma comparação um tanto exagerada:
“A direção geral das empresas multinacionais nos dá hoje um pouco da noção de como deve ter sido viajar no Titanic: estar se movimentando vagarosamente na direção errada, mas ser muito grande e potente para mudar seu curso.”
Apesar da dramaticidade da analogia, na realidade, o Professor Brown apresenta ao longo de seu livro o outro lado da história. O foco de seu estudo é no crescente envolvimento das empresas em assuntos como ética, responsabilidade social e cidadania corporativa. Não é segredo que o Brasil vem lutando nos últimos anos para virar personagem do capítulo dessa história.
Em 2013, o Brasil se alinhou à tendência mundial e promulgou sua Lei Anticorrupção, estabelecendo que as empresas passariam a responder objetivamente pelos ilícitos cometidos por seus administradores, funcionários e qualquer outra pessoa que em seu nome atuasse.
A concepção do modelo era que as empresas, sob o risco de sofrerem pesadas multas pela conduta de seus prepostos, passassem a adotar uma cultura corporativa mais ética e diligente, prezando por controles rígidos que não permitissem a prática de irregularidades. Em contrapartida, a lei previa benefícios para aquelas empresas que adotassem mecanismos aderentes ao novo modelo, podendo gozar de atenuações de multa ou propor os acordos de leniência.
O que poderia ser um processo vagaroso de conscientização desse paradigma, felizmente foi acelerado graças ao resultado da Operação Lava Jato. Além de expor frontalmente os elevados riscos da condução de negócios ilícitos e romper a barreira da impunidade, a Operação Lava Jato inaugurou no Brasil a possibilidade das empresas colaborarem com as investigações para buscarem a atenuação de suas sanções.
Se por um lado houve impulso para que as empresas buscassem sanear de vez eventuais comportamento ilícitos, na prática percebe-se que o acordo de leniência, instrumento negocial previsto na Lei Anticorrupção, ainda precisa ser aperfeiçoado.
A experiência internacional mostra que instrumentos dessa natureza demoram para se consolidar no ordenamento jurídico. Nos Estados Unidos, o programa de leniência criado em 1978, com foco específico nos cartéis, precisou ser reformulado após 15 anos para que pudesse ser bem-sucedido. No Brasil, considerada a pluralidade de órgãos que detém competência sancionadora em matéria de corrupção, era de se esperar eventual desalinhamento institucional. Por outro lado, não cuidou o legislador de garantir a necessária coordenação entre os atores públicos na negociação dos acordos de colaboração para obtenção de provas. Se, do lado estatal, essa situação prejudica o bom relacionamento entre os órgãos, para a empresa colaboradora gera insegurança quanto ao alcance dos benefícios acordados em troca da colaboração.
Se o Estado deseja incentivar que as grandes corporações adotem um caminho mais eticamente responsável, devem torná-lo mais atrativo sob todos os aspectos. O acordo de leniência é um dos instrumentos chave nesse processo. Para decidir pela colaboração, a empresa deve ter previsibilidade quanto à resposta do Estado. Penas e benefícios devem ser previsíveis e claros. Tais qualidades só serão atingidas com a articulação adequada dos órgãos pertinentes.
Das discussões atuais sobre o instrumento, depreende-se que o principal motivo de discórdia está relacionado ao quantum devido na reparação do dano causado. Aparentemente, não há questionamento quanto à competência e legitimidade da atuação de cada um dos órgãos sancionadores, nem tampouco quanto à multa a ser aplicada.
Uma solução seria a elaboração conjunta de um referencial para a apuração e quantificação do dano, a ser seguido por todos os órgãos envolvidos. Existem boas práticas nesse sentido, entre eles o manual da OCDE para identificação e quantificação dos proveitos do suborno. Compartilhando da mesma metodologia, eventuais divergências, se houverem, no cálculo do dano serão bem menores do que as hoje existentes.
Outra medida desejável seria o fortalecimento institucional da Controladoria-Geral da União, para dotar o órgão de uma instância colegiada composta por membros com mandato fixo e estabilidade na função, com competência de julgamento dos processos administrativos de responsabilização e de aprovação dos acordos de leniência. O CADE (Conselho Administrativo de Defesa da Concorrência) é a inspiração para esse modelo, considerando os bons resultados que vem alcançando na negociação dos acordos de leniência.
Para além disso, o aperfeiçoamento do marco legal, para deixar mais claro o papel de cada um dos órgãos, melhor organizar a estrutura de incentivos, além da previsão de instrumentos adicionais, como, por exemplo, o termo de compromisso de cessação para os casos em que a empresa não se qualifica para o acordo de leniência, ou o acordo plus, em que a colaboradora não se qualifica para o acordo de leniência mas presta informações sobre um novo ato lesivo, até então não conhecido pelo Estado.
O Brasil vive ótima oportunidade para entrar de vez como personagem –e de destaque– da história de mudança de comportamento ético das empresas privadas. Mas, como visto, há um dever de casa sério ainda a ser cumprido.
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